Às margens do Rio Tejipió, os moradores tem sofrido com intervenções no curso do rio, intensificadas pelas obras de triplicação da BR-232

Foto: Lucas Arruda/CBN Recife
A Comunidade da Goodyear, no bairro do Curado, em Jaboatão dos Guararapes, convive há décadas com as cheias do Rio Tejipió. Porém, devido a intervenções no curso do rio, intensificadas pelas obras de triplicação da BR-232, os moradores da região têm visto os alagamentos se tornarem mais frequentes e desastrosos.
Com cada vez menos espaço para escoamento das águas, basta chover um pouco mais forte para que as casas da comunidade sejam completamente invadidas por água e lama. E para além do dano ambiental, alguns moradores já estão até mesmo abandonando suas residências, levando em consideração o risco de vida e a desvalorização patrimonial.
Triplicação da BR-232
As obras de triplicação da BR-232 foram iniciadas em 2022, contemplando 6,8 km de extensão, desde a entrada da BR-101 (KM 4,7) até a entrada da BR-408 (KM 11,5). A previsão inicial era de que todas as intervenções fossem finalizadas ainda em 2023, o que não aconteceu.
Quase dois anos depois, o Departamento de Estradas de Rodagem (DER), responsável pela obra, ainda está mobilizado na triplicação e na construção de uma ciclovia, que durante a finalização desta reportagem, encontra-se na altura do viaduto entre Recife e Jaboatão.
Construção da ciclovia na BR-232 - Foto: Lucas Arruda/CBN Recife
É nesse ponto, ao lado da linha férrea, que fica a Comunidade da Goodyear, oficialmente loteamento Parque São João. As terras foram compradas pelos primeiros proprietários há mais de 50 anos. Inclusive, antes mesmo da duplicação da BR-232.
Maria Aparecida e Fátima Cristina seguram a planta do loteamento Parque São João - Foto: Lucas Arruda/CBN Recife
Próximo ao local, o Rio Tejipió se afunila. Pouco após o pontilhão que permite a passagem do metrô e do VLT, já no município do Recife, às margens do Tejipió foram invadidas por construções irregulares, que também expõem o dilema social e os desafios da gestão metropolitana. Por si, o pouco espaço para escoamento e o constante assoreamento do rio tornaram comum o retorno das águas para dentro da comunidade.
Em setembro de 2024, no entanto, o DER permitiu a construção de uma passagem provisória dentro do rio para a movimentação de máquinas e caminhões. A medida foi alvo de questionamentos dos moradores, que em fevereiro deste ano viram a força das águas levar para dentro do próprio leito todo o material que havia sido assentado. A cena foi registrada por Zilmário Batista, de 47 anos.
“(Está aí) a primeira cachoeira construída no Rio Tijipió. Mandaram botar carradas e mais carradas dentro do rio para poder atravessar as máquinas e agora transformou numa cachoeira. Foram carradas e mais carradas de pedra. Com a chuva, destruiu o caminho para as máquinas passarem e se transformou nessa cachoeira natural”, relatou.
Zilmário Batista mostrando a remoção do material pela força das águas - Foto: Reprodução/Redes Sociais
O material, no entanto, não ficou apenas no leito do rio. Sem espaço para escoar, ele foi conduzido pelas águas até as casas dos moradores da Comunidade da Goodyear, como relata o professor Luiz José, de 70 anos.
“O rio já estava assoreado, mas com essa obra piorou muito mais. Eles fizeram uma ponte no meio do rio, botaram pedra, e esse barro foi para dentro do rio, que está muito mais raso. Veio essa chuva em fevereiro, e com todos os materiais juntos perto da ponte, a chuva jogou tudo para dentro do da comunidade. Eu moro aqui há 48 anos, nunca deu uma cheia tão imunda feito essa. E violenta!”, destaca.
Material utilizado na passagem que foi levado para dentro da comunidade - Foto: Lucas Arruda/CBN Recife
Zilmário Batista lembra que, após o ocorrido em fevereiro, boa parte do material chegou a ser retirada pelo DER.
“Se a gente ver lá, só ficaram as pedras que são grandes de volume. Elas a água não consegue levar. Mas o barro, o pó de pedra, isso foi para dentro do rio, assoreando ainda mais o que já estava. E quando essa chuva veio, como a ponte virou um paredão, toda a água entrou para dentro da comunidade com velocidade e com lama”, reforça.
Rio Tejipió, abaixo do viaduto da BR-232, pós efeito da força das águas - Foto: Lucas Arruda/CBN Recife
O que dizem o DER e a CPRH
Procurado pela reportagem da CBN Recife, o Departamento de Estradas de Rodagem (DER) afirmou, em nota, que a estrutura construída “foi planejada para preservar o escoamento natural do rio, com instalação de tubos de concreto que asseguraram a fluidez da água. Após o cumprimento dessa etapa, a passagem foi removida e o curso do rio foi restabelecido”.
O DER ainda informou que acompanha atentamente as manifestações da população em relação aos episódios de alagamento registrados nas imediações da BR-232, especialmente na Comunidade Goodyear, destacando que o problema é anterior às intervenções em andamento.
“As obras de triplicação da rodovia e a construção da ciclovia devem ser concluídas até o final de julho de 2025, e estão sendo conduzidas com o devido rigor técnico e ambiental. (...) O DER reafirma seu compromisso com o desenvolvimento sustentável, com a segurança viária e com o bem-estar das comunidades vizinhas às obras”, concluiu o órgão estadual.
Os moradores da Goodyear também questionam se, do ponto de vista ambiental, havia legalidade na construção da passagem. A Agência Estadual de Meio Ambiente de Pernambuco (CPRH) disse à reportagem da CBN Recife que realizou o licenciamento das obras de triplicação da BR-232 no ano de 2022, com todas as condicionantes necessárias para mitigar os impactos ambientais. Uma equipe será enviada ao local para verificar se houve alguma desconformidade da obra com a licença emitida.
Lama em meio à construção de um retorno abaixo do viaduto da BR-232 - Foto: Lucas Arruda/CBN Recife
Gestão metropolitana do Rio Tejipió
Bacia do Rio Tejipió - Fonte: INPE via ResearchGate
A bacia do Rio Tejipió é densamente urbanizada. Com a nascente localizada em São Lourenço da Mata, já no Grande Recife, o rio marca o limite entre Jaboatão dos Guararapes e a capital pernambucana: os dois municípios mais populosos de Pernambuco. Ao desembocar na bacia do Pina, o Rio Tejipió já tem passado por todo tipo de intervenção humana.
Sem espaço para escoar e realizar seu movimento natural, quando o rio sobe, inúmeras famílias são afetadas, como explica a coordenadora do Fórum Popular do Rio Tejipió (FORTE), Géssica Dias.
“As famílias que estão à beira ou na calha principal do Rio Tejipió são famílias empobrecidas, dependentes de programas sociais, numerosas, chefiadas por mulheres, de população negra… São os recortes que compõem o perfil da vulnerabilidade. Essa bacia tem quase 93 km de extensão. Só no Recife está mais de 70% do Rio Tejipió, e a capital acaba recebendo a maior proporção da gestão dessa bacia. Jaboatão tem pouco mais de 20%”, detalha.
No caso da Comunidade da Goodyear, a constante necessidade de limpeza e desassoreamento do Rio Tejipió esbarra na competência alegada pelas prefeituras do Recife e de Jaboatão. Apesar de a área ser completamente jaboatonense, é no trecho recifense, logo à frente, que o leito se estreita - algo ainda mais impactado pela poluição e pela areia que se deposita na calha principal.
Assoreamento do Rio Tejipió - Foto: Lucas Arruda/CBN Recife
O deputado estadual João Paulo (PT) coordena a Frente Parlamentar do Rio Tejipió, instalada em março do ano passado na Assembleia Legislativa de Pernambuco (Alepe). João Paulo e sua equipe acompanham de perto a situação enfrentada pelos moradores da Goodyear. Ex-prefeito do Recife, ele reforça o quanto a gestão metropolitana é fundamental para acabar com o dilema enfrentado pelos moradores.
“Nessas áreas de ‘fronteiras’, a situação é ainda mais grave. Essa questão resgata a necessidade do planejamento metropolitano. Nós temos, sem sombra de dúvida, perspectiva de articular junto com Recife e Jabotão. Esse é um problema também ocasionado por ocupações irregulares, por um racismo ambiental. As pessoas que moram lá nas proximidades ocuparam pelas condições de pobreza, de miséria. Mas a ausência do poder público é uma questão que agrava ainda mais essa situação”, acredita.
Limite entre os municípios de Jaboatão dos Guararapes e Recife - Foto: Lucas Arruda/CBN Recife
Em nota conjunta encaminhada à CBN Recife, as secretarias de Infraestrutura e de Serviços Urbanos da Prefeitura de Jaboatão dos Guararapes informaram apenas que a retirada do material colocado no Rio Tejipió, nas proximidades da comunidade da Goodyear, era de responsabilidade do DER. A Prefeitura do Recife não responde pela área.
Pedido de socorro
Moradora antiga da Goodyear, Fátima Cristina, de 64 anos, viu as águas do Rio Tejipió superarem a marca de 1,2m em sua residência nas chuvas de fevereiro. Para se proteger, ela permaneceu no primeiro andar, onde também acompanhou a invasão do rio nas outras residências.
“No rio não havia essa quantidade de areia. As pessoas pensam que é lixo, mas não é. O rio está assoreado. Antigamente tinha só um pontilhão, que era da linha do trem. Depois se fez a duplicação (da BR-232), fez o alargamento, o metrô… O problema da comunidade está em dois lugares: esse dos pontilhões, onde a areia se acumulou debaixo, e o fato de ser limite entre Recife e Jabotão. Esse limite é triste, porque um (município) joga para o outro. Ninguém quer resolver o problema”, disse.
“Dona Fátima” em frente a sua residência - Foto: Lucas Arruda/CBN Recife
Os próprios moradores se mobilizaram para encontrar soluções antes que uma tragédia maior aconteça. Partiu do professor Luiz José a ideia de instalar placas na entrada das residências indicando que falta diálogo com o poder público. E mais, que a comunidade está sendo consumida pelo barro.
Placas confeccionadas pelo professor Luiz José - Foto: Lucas Arruda/CBN Recife
Quem também sentiu a necessidade de tomar uma medida concreta foi a moradora Maria Aparecida, de 73 anos. Para impedir que a água entre novamente na sua residência, ela instalou uma contenção na porta principal - digna de cena de guerra. Afinal, é assim que os moradores da Goodyear encaram a situação, dada a possibilidade real de precisarem deixar suas residências.
“Não somos contra o progresso. Eu acredito que o progresso é bom para todos, inclusive para nossa comunidade. Só que nós não podemos sofrer um desgaste financeiro, e fora que aqui tem cadeirantes. Para tirar essas pessoas de dentro de casa é um sacrifício. Aqui já tivemos a ‘doença do rato’ por conta dessa cheia. Então, não queremos proibir o progresso, mas também não queremos sofrer com progresso”, destacou.
Maria Aparecida mostra a contenção para impedir a entrada da água - Foto: Lucas Arruda/CBN Recife
Uma reunião estava marcada entre os moradores da Comunidade da Goodyear e a Secretaria de Mobilidade e Infraestrutura de Pernambuco (Semobi), responsável pelo DER, para última quinta-feira (10). Ao chegarem ao local acompanhados de um representante da Frente Parlamentar do Rio Tejipió, os moradores souberam que a reunião tinha sido desmarcada por incompatibilidade de agenda. Não há previsão para um novo encontro.
Maria Aparecida, Zilmário Batista, José Luiz e Fátima Cristina - Foto: Lucas Arruda/CBN Recife
Agora, a principal reinvindicação apresentada pela Comunidade da Goodyear é a interdição de um retorno que está sendo construído abaixo do viaduto da BR-232, pelo menos até enquanto seja apresentada a viabilidade da obra. Nesta quarta-feira (16), pela terceira vez, uma parte dos moradores da região vai ao Ministério Público de Pernambuco (MPPE), no Recife, para apresentar a demanda.
Após anos de lutas, gritando para o vento, os moradores da Comunidade da Goodyear continuam querendo ser ouvidos. O que eles pedem é que, quando a próxima chuva vier, suas casas, vidas e histórias não sejam levadas pelas águas do Rio Tejipió.
Edição - Daniele Monteiro
Sonorização - Lucas Barbosa
Reportagem - Lucas Arruda
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