Jarbas e as urnas, uma relação insuperável
Antonio Lavareda*
Percorrer o trabalho meticuloso de Ennio Benning, jornalista que se revelou exímio biógrafo com lente de historiador, atilou-me a memória, e tornou irresistível que este Prefácio se transformasse em depoimento pessoal.
Fim de Abril e eu acabara de retornar de uma viagem aos Estados Unidos chamado a conhecer experiências exitosas de governos estaduais, incluindo um encontro com o então jovem governador de cara rechonchuda do sulista Arkansas, Bill Clinton, quando tocou o telefone.
Maurilio Ferreira Lima, amigo desde que voltara do exílio, chegou ao apartamento no dia seguinte, uma terça-feira, acompanhado de Jarbas Vasconcelos, o qual eu nunca havia encontrado pessoalmente. A distância ele me parecia uma figura jacobina que apesar do papel superlativo na resistência à Ditadura era pouco adequada à nova conjuntura do país. Do décimo andar do edifício no Parnamirim víamos os morros de Casa Amarela, e conversamos um bom tempo sobre os desafios do futuro da cidade. Nos dias seguintes continuei a rotina de Coordenador do Mestrado em Ciência Política da UFPE que assumira após retornar de Berkeley, onde passara um ano como Pesquisador Visitante na Universidade da Califórnia.
No sábado, tendo sido convidado para ser um dos Conselheiros do recém-criado “Centro Debate”, cheguei às nove horas da manhã. Alí seria, de fato, o QG da marcha de Jarbas à Prefeitura.
O ano era 1985. A Nova República estava nascendo. Tancredo Neves se fora. E o governo do Presidente Sarney - que havia ingressado no PMDB como candidato a Vice-Presidente por exigência da legislação da época - necessitando aumentar seu teor de legitimidade convocara eleições para as capitais e municípios de segurança nacional. O Recife ia resgatar sua autonomia.
Fui atraído para o turbilhão da campanha, passando a conviver de perto com o estado-maior responsável pela sua operação – os deputados estaduais Edgar Moury, Marcos Cunha e o vereador Carlos Eduardo Cadoca. E, vez por outra, a convite do candidato, me relacionando com os principais apoiadores: Miguel Arraes, Pelópidas Silveira, Egídio Ferreira Lima e o ministro Fernando Lyra. Acompanhei, assim, grande parte das tratativas para a viabilização da candidatura. Enfrentando o governo estadual de Roberto Magalhães (PFL), e a ala do PMDB liderada por Marcos Freire e Cid Sampaio, Jarbas terminou perdendo o apoio oficial do partido em que militava desde o início da carreira. Teria que migrar no apagar das luzes do prazo legal de registro no TRE para o minúsculo PSB, que não estava estruturado no Estado. Incumbido de organizar às pressas a Comissão Executiva da legenda, o deputado Marcos Cunha a compôs com o jornalista Ivan Maurício, na Presidência, eu na Secretaria Geral, e a então estudante de Direito Hebe Silveira, filha de Pelópidas, na Tesouraria. Coube-nos dirigir no plenário da Assembleia Legislativa a Convenção de escolha das chapas de candidatos a Prefeito, Vice-Prefeito e Vereadores.
O “Debate” funciona até hoje numa casa pequena na Ilha do Leite, de poucos cômodos, completados por um auditório sem luz natural. Lá dentro, era o frenesi de um exército de militantes dos mais diversos matizes. Logo mais começaria a propaganda na TV, onde Ivan fez milagres no pouquíssimo tempo disponível, ao som do jingle inesquecível criado pelos publicitários Jairo Lima e Joca Souza Leão. Por sugestão de Fernando Lyra, eu me incorporei à discussão do conteúdo do programa e acompanhava as gravações. Depois dos comícios embalados pelo cantor Reginaldo Rossi, eram frequentes as conversas com um grupo reduzido continuarem no Mourisco, em Olinda, o restaurante de Zinho Correia, o amigo mais próximo de Jarbas. Na volta de uma dessas madrugadas, poucos dias antes da eleição, flagramos um grupo colando cartazes apócrifos contra o candidato, que no seu melhor estilo resoluto desceu do carro e deu voz de prisão ao time estupefato.
Campanhas eleitorais costumam ter efeitos limitados, ao contrário do que supõem alguns marqueteiros. Isso foi provado por Paul Lazarsfeld lá atrás, e reiterado por vários outros, incluindo Thomas Holbrook. Aquela eleição, do ponto de vista teórico, era impossível de ser ganha. Apesar de ter obtido sete anos antes uma votação consagradora ao Senado (quando fora derrotado pelo artifício da sublegenda) na nova conjuntura ele estava na contramão da política - o fator que costuma ser a chave da vitória. Jarbas enfrentava um candidato da Aliança Democrática, PMDB mais PFL, coalizão que pusera fim ao regime militar. Por coerência “excessiva” - como ele próprio reconheceria anos depois -, vez que fora um dos comandantes da campanha das “Diretas” não admitiu comparecer ao Colégio Eleitoral. Não votara em Tancredo Neves. Esse comportamento, sobretudo após a morte trágica do Presidente eleito, parecia quase um crime de lesa-pátria. Para agravar sua fragilidade, contava com um tempo mínimo na TV. Sem falar da desigualdade absurda dos respectivos recursos financeiros. Por tudo isso, tão logo começaram os programas de televisão e rádio foi ultrapassado.
Como conta Ennio, a virada só ocorreu como resultado de um grande esforço nos últimos dez dias, onde se atacou sem tréguas o candidato adversário, na pessoa física. Na verdade, poucos acreditavam que resgatar a história de um homicídio em legítima defesa ocorrido 25 anos antes, com o réu absolvido por unanimidade, pudesse alterar os rumos da eleição. Nem Jarbas acreditava nisso. Coube-me mostrar-lhe numa conversa a dois uma pesquisa que fizemos especificamente nos bairros pobres do Recife, onde se constatava que as pessoas mudariam suas escolhas caso informadas do ocorrido.
Daí para a frente tudo girou em torno disso. O efeito era imediato. Os eleitores que em sua maioria não conheciam o deputado federal Sérgio Murilo, o qual nunca disputara anteriormente uma eleição majoritária, ficavam perplexos ao saberem do fato. Afinal, o adversário de Jarbas, cuja propaganda copiosa o acusava sem parar de “odiento” por ter se negado a votar em Tancredo, ocultava na biografia um episódio lamentável, cuja vítima ademais fora um homem negro. Tal como a pesquisa antecipara, o nome que até então liderava a disputa não resistiu. Depois, outro estudo mostraria claramente o que se deu: Jarbas não cresceu, mas seu opositor despencou. Foi realizado com o metódo de “Painel” - exatamente as mesmas pessoas sendo entrevistadas no início e no final da disputa. Criado na Universidade de Columbia, foi replicado pioneiramente no Brasil pela equipe que fundaria o Ipespe no ano seguinte.
A vitória para muitos surpreendente de Jarbas viria inaugurar um MBA de políticas públicas, do qual ele foi o maestro e nós partícipes ativos. Pela primeira vez, após 21 anos, um grupo alijado de cargos de comando pela ditadura assumia protagonismo na capital mais emblemática do Nordeste. Começava um exercício de prática e aprendizado a um só tempo para egressos, alguns como eu da academia, outros dos movimentos sociais e de entidades representativas, além dos experimentados na atividade parlamentar.
Lembro até hoje de personagens muito fortes, alguns deles de saudosa memória. Anatólio Julião, Bayron Sarinho, Cláudio Marinho, Edla Soares, Fernando Correia, Homero Fonseca, Jaime Gusmão, João Braga, João Roberto Peixe, João Humberto Martorelli, João Negromonte, Jorge Martins, José Arlindo Soares, José Carlos Guerra, Leda Alves, Lúcia Pontes, Sydia Maranhão, Silvia Pontual, Silvio Pessoa, Teógenes Leitão, Roberto Pandolfi e Raul Henry, o mais jovem chefe de gabinete do país. Uma turma de “alunos” de formação e idades diferentes, selecionados pela notável intuição do Prefeito que os coordenava. Ele próprio aprendendo enquanto passava de jogador a técnico. Não por acaso os técnicos no futebol, que ele adora, também são chamados de “professor”.
Em meio a esse time, eu, um cientista social “observador participante”, pude cursar uma autêntica pós-graduação em gestão pública. Como único Assessor Especial, e instalado ao lado do gabinete do Prefeito, era envolvido e aprendia interagindo com a equipe ultra talentosa sobre temas das diversas áreas da administração. Experiência enriquecida ademais por outras tarefas que ele me delegou.
O assessorava no debate político (no rico período da redemocratização); era encarregado da supervisão das campanhas publicitárias da Prefeitura; o acompanhava nos encontros das Frentes de Prefeitos - primeiro, das capitais do Nordeste, criada por ele, depois das capitais do Brasil; e acumulava ainda a função de Secretário Executivo do Instituto da Cidade do Recife, ao qual estava ligado o Teatro Santa Isabel. Nele seria instalado um dos “Centros de Acompanhamento da Constituinte”, em convênio com a Fundação Pró Memória, dirigida por Joaquim Falcão, do Ministério da Cultura, cujo titular era Celso Furtado.
Lançando mão da incipiente tecnologia de informação da época, sem dispor de Internet ou telefonia celular, utilizava-se o Cirandão Mensagem da Embratel, com acesso feito por modem. Dessa forma, a Prefeitura não apenas possibilitava uma intensa participação através do acesso gratuito dos indivíduos e dos movimentos sociais ao desenrolar dos trabalhos dos parlamentares constituintes, mas também fazia chegar até Brasília a manifestação dos recifenses a respeito dos pontos que despertavam maior polêmica no processo de elaboração da nova Carta Magna, que eletrizava o país. Em complemento, organizamos uma Audiência Pública com Constituintes, entre os quais Mário Covas, líder do PMDB, e Cristina Tavares, que lotou o velho teatro.
Foram três anos frenéticos. E às horas de trabalho sem trégua no prédio da sede da administração no Cais do Apolo, não raro se somavam algumas outras depois do expediente no bar do Grande Hotel, o “Esquina 17”, onde esticavam-se as reflexões e estreitava-se a nossa convivência.
Nessa primeira passagem pela Prefeitura, Jarbas iria temperar a assertividade e o posicionamento à esquerda, que marcaram sua trajetória da fase parlamentar oposicionista, com a lógica da prática administrativa. Essa experiência foi decisiva. Ela explica os movimentos posteriores que partindo da esquerda o levariam, ao longo do tempo, a alianças com forças de centro, de direita, e
novamente de esquerda no jogo político estadual. Foi após a chegada à Prefeitura que passaria a ser movido por algo semelhante ao que o também pernambucano Joaquim Nabuco batizara muito antes como “idealismo prático”.
A “Turma de 1985”, comandada por Jarbas Vasconcelos, brilhou no mandato relâmpago – três anos sem direito à reeleição – fazendo após duas décadas a primeira governação democrática da cidade. E foi aprovada com louvor. Em todas as pesquisas do Datafolha ele ocupou o primeiro lugar, como o Melhor Prefeito das Capitais. Com esse aprendizado e reconhecimento, mestre e alunos iriam crescer, galgando a partir daí posições de maior relevo e prestígio no estado e no país.
Jarbas disputou nada menos que 13 eleições, ganhando 10 delas. E destacou-se, especialmente, nos pleitos majoritários. Mais que as pesquisas exibindo aprovação elevada, é a recondução aos cargos que melhor atesta o seu sucesso. Foi Prefeito da capital por duas vezes, Governador também por duas vezes, e duas vezes se elegeu ao Senado. Ao todo, venceu de forma inédita seis eleições majoritárias, nunca tendo que disputar um segundo turno. Eu estive com ele em todos esses momentos.
A habilidade nas alianças e a sintonia fina e cativante com a população, o que desde Max Weber chamamos de carisma, fariam dele um histórico recordista nas urnas.
*Cientista Político e sociólogo.
(Este é o prefácio de um dos volumes da biografia do senador Jarbas Vasconcelos lançada esta semana).