Dissonâncias cognitivas e narrativas
Por Maurício Rands
Pessoas inteligentes às vezes acreditam no inverossímil. Mesmo quando contrário à lógica e às evidências. Instituições, idem. O cidadão observador tem direito de ficar atônito com o festival de insensatez que assola o país. Como entender isso? Só mesmo recorrendo aos avanços da psicologia cognitiva. Que nos trazem o conceito de dissonância cognitiva. Estamos sempre formulando juízos sobre objetos ou temas. Gerando opiniões ou crenças. Não raramente, chegamos a juízos que estão em contradição com outras das nossas cognições. Produzida a dissonância cognitiva, tendemos a eliminar essa inconsistência entre nossas cognições porque ela nos angustia. Aí acionamos mecanismos psicológicos para reduzir nosso desconforto. O resultado é que construímos narrativas próprias que tentam harmonizar juízos inarmonizáveis. Geralmente juízos que se chocam com os dados da realidade. Quando não estamos abertos a mudar algumas das nossas crenças ou (pre)conceitos, ligamos um inconsciente “dane-se a realidade; real é a minha narrativa!”. Passamos a negar ou a não enxergar evidências. O importante é defender o ego.
Tomem-se algumas atitudes recentes da nossa corte guardiã da constituição. O constitucionalismo democrático contemporâneo é tributário das constituições dos EUA (1787) e da França (1791). Essas constituições criaram ordens estatais fundadas no consentimento do povo e no exercício controlado do poder político, garantindo direitos fundamentais. O nosso STF está cumprindo, aos trancos e barrancos, esta sua função constitucional de controle do exercício do poder político. Tem procurado conter as veleidades autoritárias de um presidente que não se contenta em governar sob os limites, freios e contrapesos do constitucionalismo democrático. Pode-se, pois, dizer que a nação hoje precisa muito de um STF legítimo, eficiente e equilibrado para exercer seu papel constitucional. Mas as derrapagens de seus membros têm diminuído a autoridade de que ele precisa para exercer suas funções. Seja pelo excesso de exposição na mídia. Seja pelas oscilações radicais de sua interpretação da constituição a depender da conjuntura e dos personagens envolvidos. Seja pelo abuso das decisões monocráticas. Seja pelo bate-boca entre seus membros em manifesta quebra do decoro. Seja quando, num momento de dificuldades generalizadas, propõe um reajuste remuneratório de 18% para seus membros e servidores, ainda que escalonado em quatro incidências, a um custo total de R$ 1,9 bilhões quando incluídos os demais servidores vinculados. Lógico que seus membros são inteligentes e informados. Mas como não percebem que essas condutas diminuem sua autoridade e legitimidade? Não veem que seu papel de contenção das instituições seria fortalecido se nelas não incorressem? Acaso não entendem que as cartas da sociedade civil lidas em 11 de agosto representam um voto de confiança na instituição que representam? E que, para isso, necessitam estar à altura das expectativas neles depositadas? Não enxergam que os baixos índices de aprovação, de apenas 23% de ótimo/bom segundo a última pesquisa Data Folha, não se devem apenas à repulsa dos seguidores do presidente?
Tome-se também o caso de eleitores que vão votar em Bolsonaro. Mesmo os que não concordam com seus excessos e apenas não querem a volta de Lula. Argumentam que os políticos são todos malévolos e corruptos. E, por isso, somente Bolsonaro poderia combatê-los. Como conciliam esse pensamento desejoso com a realidade de que o presidente está abraçado com o Centrão de Arthur Lira e Ciro Nogueira? Imaginam que os R$ 19 bi anuais do orçamento secreto são executados republicanamente? Acham que o ministro da educação preso por corrupção era ministro de um governo petista? Ou que o escândalo da Codevasf é invenção? Acreditam que, mesmo entregando a chave do cofre ao Centrão, um Bolsonaro reeleito vai acabar com a corrupção?
Por fim, tome-se o caso de alguns eleitores de Lula. Seu candidato, em quem também vou votar, tem chances de ganhar as eleições daqui a 50 dias e inaugurar um novo ciclo. A partir de uma frente democrática ampla como a costurada por Ulysses e Tancredo. Mas está encontrando resistências em eleitores que esperavam uma crítica aos episódios de corrupção que ocorreram nos governos petistas. Que esperam também alguma sinalização de que eles não voltarão a ocorrer. Custaria tanto fazer uma autocrítica? Ou se comprometer com alguma iniciativa como a criação de um conselho da sociedade para combate à corrupção? Ou acham que basta alegar que a corrupção sempre ocorreu em todos os governos? Supõem que hostilizar os 57 milhões de eleitores que votaram em Bolsonaro em 2018, ou os atuais de Ciro e Tebet, é uma boa tática para ganhar as eleições de 2022?
Para superar essas dissonâncias cognitivas, cada um se apega à sua narrativa.
Maurício Rands, advogado formado pela FDR da UFPE, PhD pela Universidade Oxford