Devoção em todo lugar: 324 anos de história e fidelidade à Padroeira do Recife
Data marcada pelo grande fluxo de fiéis na Basílica do Carmo e pela procissão nas ruas do Recife passou por mudanças em decorrência da pandemia, mas não perdeu a essência que move e emociona os religiosos
Por: Antonio Diniz
Nesta quinta-feira (16), o Recife celebra o Dia de Nossa Senhora do Carmo. São 324 anos de devoção e tradição. Mas diante de um ano atípico, por causa da pandemia do novo coronavírus, a comemoração, pela primeira vez, precisou ser diferente: sem programação vasta na Basílica, sem a tradicional procissão com a imagem da santa e sem aglomerações na igreja (o público de cada celebração foi reduzido em 30%). No entanto, o elemento mais importante da tradição continua vivo no pensamento, na alma e na vida dos fiéis: a fé. A crença de que dias melhores virão permanecem na rotina dos devotos, mesmo em meio às provações enfrentadas pelo mundo. A prova é o processo de adaptação, vivido por todos, para manter o costume presente nos dias difíceis.
Em decorrência do cenário a atual, a programação cultural, com diversas atrações musicais, aconteceu pelas redes sociais no formato de live. Os dias que antecederam a grande data foram marcados por shows de artistas como Dudu do Acordeon, Irah Caldeira e o padre Damião Silva. De acordo com o Frei Rosenildo Alexandre, reitor da Basílica do Carmo, a internet e as redes sociais têm sido grandes aliadas desse período para a continuidade da evangelização. “A igreja usou desse meio para manter viva a fé das pessoas. Uma pessoa, que vem a missa semanalmente, passar 4 meses sem comungar, é uma dor muito grande. No entanto, essas pessoas foram alimentadas pela fé, pela eucaristia, por meio da internet”, destaca o Frei.
Inclusive, muitos questionamentos referentes a fé da igreja surgiram neste período, aponta o Frade, já que o templo precisou seguir as medidas preventivas da Organização Mundial de Saúde (OMS), impedir a participação dos religiosos nas missas e limitar as atividades habituais. Frei Rosenildo Alexandre ressalta o papel da instituição de conscientizar a sociedade: “é na conscientização que a igreja trabalha, investe e reza, porque a igreja é a favor da vida e não da morte. Diante dessa situação da pandemia, é preciso termos a consciência daqueles que são vulneráveis e cuidarmos deles para que fiquem em casa. Até o próprio Deus disse ‘não tentarás o Senhor teu Deus”, afirma.
Neste momento, o Recife encontra-se em fase de flexibilização do isolamento social, com a retomada de algumas atividades. Uma delas foram as missas, que puderam retornar, desde que seja seguida uma série de recomendações, como a capacidade do ambiente, a qual precisa obter no máximo 30% da quantidade total de pessoas. O padre relata o sentimento devastador de observar os fiéis indo à Basílica e se deparando com as portas fechadas. “Parte o coração da gente. A gente vê as pessoas mendigando uma missa e não poderem entrar. A gente pede que esperem outra missa ou cheguem um pouco mais cedo para conseguir participar dos festejos de Nossa Senhora do Carmo. Lembrando que o mês de julho é todo dela, então, você pode celebrar até o dia 31, tem tempo o suficiente de vir e realizar os seus louvores”, sugere o Frei.
A origem da devoção à Padroeira do Recife
O contexto da Basílica de Nossa Senhora do Carmo se mistura com a história do próprio povo pernambucano, envolvendo diversos elementos históricos, artísticos, culturais, devocionais e religiosos. Símbolo de resistência, a história de Pernambuco foi marcada por inúmeras invasões, revoluções e guerras. Após o período da invasão holandesa e consequente expulsão dos holandeses, em 1654, o local onde a igreja ocupa atualmente, que pertencia ao conde Maurício de Nassau com o Palácio da Boa Vista, foi doado aos carmelitas. A construção, que durou cerca de 100 anos, só começou, de fato, em 1685 e terminou em 1767. O monumento acompanhou todo o crescimento da cidade do Recife, presenciou momentos emblemáticos da história, por exemplo, quando tornou-se uma vila, durante a Guerra dos Mascates, a Revolução de 1817, entre outros episódios.
Segundo o historiador da Ordem do Carmo, Frei Cristiano Garcia, ao longo das guerras, epidemias da Febre Amarela, Gripe Espanhola e outros momentos desafiadores da história, os Carmelitas tiveram uma atuação significativa, ajudando de forma religiosa, o que fazia com que as pessoas recorressem a Nossa Senhora do Carmo para terem um momento de devoção e de pedidos pela cura das doenças que atingiam a população. “Na revolução de 1930, construíram barricadas na frente da igreja e os frades ajudaram os feridos trazendo para a basílica. Na época, tentaram invadir e não conseguiram, porque o povo ficou na frente e disse ‘na igreja ninguém entra’. Então, isso é muito importante, porque se torna um lugar sagrado. Além de ser um templo, representa o templo daquela santa que a população tem mais devoção, é a padroeira. Então, a construção histórica de Nossa senhora do Carmo como padroeira do Recife é uma construção que provém do próprio povo, que aclama”, explica o Frade Carmelita.
A partir deste contexto, a Festa de Nossa Senhora do Carmo surgiu naturalmente pelo sentimento de apreço do próprio povo. Inicialmente, os religiosos realizavam a celebração na frente da própria basílica, venerando a imagem de pedra que existia no frontispício da igreja. Os frades observaram esse movimento popular laical e trouxeram a festa para a igreja, deram impulso, aumentaram as celebrações das missas, abriram a igreja para as pessoas que faziam a festa no pátio e construíram, liturgicamente, a novena de Nossa Senhora do Carmo. “Essa devoção aumenta tanto que Nossa Senhora do Carmo é proclamada padroeira da cidade em 1909; em 1919, acontece a coroação canônica. Isso tudo é fruto de uma grande construção de devoção do povo, além dos trabalhos dos religiosos carmelitas. Em 1922, a igreja é elevada à Basílica Menor, quer dizer que, a partir de então, ela era agregada à Basílica do Vaticano e se tornava também uma basílica”, destaca o historiador.
O Frei acredita que a dedicação tão latente dos recifenses à padroeira da cidade é consequência do valor afetivo e sentimental que foi agregado no decorrer da história. Por isso, todos os anos, é natural que haja comoção durante o mês de julho, com multidões seguindo a procissão, participando das missas e se envolvendo com trabalhos religiosos. “Na igreja, as pessoas encontram o descanso para aquele fardo que muitas vezes levam, um alento, um lugar de colocar suas preces, seus pedidos, de também agradecer os milagres alcançados”, pontua Garcia.
Outro aspecto que contribui para a imersão dos fiéis à basílica é a sua constituição arquitetônica, a qual representa um símbolo do barroco pernambucano. O templo, tombado pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) desde 1938, não obedece à uma única lógica artística, visto que foi construído aos poucos, mas o estilo barroco marca o visual da Igreja, com elementos rebuscados, imagens, em pedra, de Nossa Senhora do Carmo, além dos santos Elias e Eliseu, precursores da ordem carmelita, fachada embelezada por arabescos, acervo de obras religiosas com valor inestimável. “A riqueza de detalhes, a riqueza de ornamentos, do Altar-mor, dos Santos, dos altares, tudo isso constitui uma riqueza imensurável para o povo pernambucano, que se acostumou a ver, ao entrar no templo, e cresceu vendo essa beleza artística”, estabelece Frei Cristiano.
Relatos de fé
As graças alcançadas marcam quase todas as histórias dos devotos com a Padroeira do Recife. Mesmo que muitos fiéis tenham uma relação longínqua com a virgem santíssima, a fé sempre é potencializada no momento de realização de algum pedido. A dona de casa e cozinheira voluntária na Basílica de Nossa Senhora do Carmo, Rita Santana, é um exemplo entre milhares. Ela participa dos festejos há 12 anos e relata que, em 2016, alcançou a cura de um câncer graças à Santa. “Fui diagnosticada com um câncer no olho direito e graças a nossa senhora do Carmo, no dia 16 de julho de 2016, recebi o resultado que estava curada e não precisei fazer nenhuma quimioterapia. Então, a minha gratidão à ela e à toda família carmelitana, onde sou acolhida. Peço a todos que nunca percam a fé, porque ela nunca desampara os seus filhos e tudo será alcançado”, expõe Rita.
Apesar da boa adesão das novas ferramentas de evangelização, os fiéis estão muito sentidos com a falta da celebração tradicional. A maioria enxerga, neste período do ano, a oportunidade de renovar os votos de fé, recarregar as energias e retribuir as graças alcançadas à padroeira, seja comparecendo na missa, acompanhando a procissão ou até mesmo contribuindo nas atividades da igreja através do voluntariado. A dona de casa e voluntária, Valdete Santos, participa da comemoração há 25 anos, como fiel, coordenadora de vendas da basílica e responsável pelas rosas do evento. Ela lamenta profundamente a situação atual “Essa mudança tradicional tocou no fundo da minha alma, dentro do meu coração, porque mudou a nossa vida. Muito triste a gente não estar trabalhando com amor para nossa senhora e para a nossa igreja. Isso doeu muito, mas a gente agradece a Deus, porque a gente sabe que é pelo bem da gente”, comenta Valdete.
Todavia, a dona de casa ressalta que, independente do cenário que esteja inserida, a comemoração sempre estará presente. Este ano, por exemplo, ela irá celebrar de casa, através da televisão e das redes sociais, fazendo as orações e a novena. Segundo ela, tudo pode mudar, menos a fé. “Eu digo assim a Jesus: ‘mesmo que eu pegue essa doença, que meus filhos peguem, eu jamais vou negar o meu Senhor e a Nossa Senhora’. Minha fé vai aumentar cada vez mais, porque cada vez que a gente tem um problema, a gente não recorre a ele e a ela? A minha fé é essa”, afirma a Voluntária.
As duas voluntárias representam uma parcela significativa da população recifense que acreditam na intercessão de Nossa Senhora do Carmo. Em meio a um cenário conturbado, repleto de restrições, elas demonstram que, mesmo que a basílica seja o lugar propício à espiritualização, ideal para contemplar a imagem da santa, a fé é maior que as dificuldades e a devoção está em todo lugar.
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