Edital do Governo do Estado que prevê câmeras para monitorar “vadiagem” gera polêmica
A punição por vadiagem foi assinada pelo presidente Getúlio Vargas, em 1941
Foto: Reprodução/TV Globo
Em junho, o Governo de Pernambuco lançou um edital de licitação para a aquisição de duas mil câmeras de segurança pública, com uso de Inteligência Artificial (IA), após o estado ter passado seis meses com os equipamentos desligados. No entanto, um dos objetivos previstos neste edital é utilizar as imagens para "detecção de vadiagem" nas ruas.
O primeiro lote de câmeras deve ser implantado no estado ainda em outubro deste ano, com previsão para conclusão em 2025. A Secretaria de Defesa Social (SDS) de Pernambuco deve adquirir 550 licenças desse tipo, ao custo total de R$ 1,15 milhão.
O termo de referência demanda a licença de um analítico de imagem com detecção de vadiagem, ou seja, de comportamentos possivelmente fora dos padrões de normalidade, como explica Raquel Saraiva, do Instituto de Pesquisa em Direito e Tecnologia (IP.Rec).
“O analítico de imagem tem um algoritmo dentro da câmera que faz um reconhecimento e a descrição daquela imagem. O que vai acontecer é que o programa, provavelmente, vai ser configurado para detectar um tipo de imagem específica. O que temos dúvidas é: que tipo de imagem seria considerada vadiagem para os efeitos que o governo do estado quer?”, indaga.
A punição por vadiagem, ainda prevista como contravenção no Brasil, foi assinada pelo presidente Getúlio Vargas em 1941, na ditadura do Estado Novo. A Lei ficou marcada pela subjetividade e racismo para classificar alguém como vadio, com pena entre 15 dias e três meses. A professora de Direito da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), Manuela Abath, explica que o termo é ainda anterior a Vargas.
“O crime ou a contravenção de vadiagem tinha um texto muito aberto. Então, ele foi, no Brasil, um instrumento poderoso de controle sobre a população negra ao longo do século XIX - seja antes da abolição, quando você não sabia exatamente se aquela pessoa negra era uma pessoa escravizada ou liberta, seja após a abolição, quando houve uma não inserção dessas pessoas no mercado de trabalho. Atividades cotidianas, inclusive de divertimento urbano, eram também passíveis desse tipo de olhar”, conta.
Existe um projeto de lei em tramitação na Câmara dos Deputados, o PL 3158, desde 2021, que retira a contravenção do Código Penal. Hoje, a proposta aguarda a designação de um relator na Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania (CCJC).
“Quando você vai nas estatísticas de justiça criminal, não há pessoas presas ou condenadas por essa prática em específico. Agora, ela faz parte de um imaginário social de quem seriam essas pessoas que, na verdade, são opositoras à ordem pública. A utilização desse conceito não tem como existir sem que a gente remeta a esse passado, em que, de fato, essas pessoas eram aprisionadas”, reflete a professora Manuela Abath.
Em nota, a SDS afirmou que A prática de "vadiagem", descrita no edital, refere-se a um recurso chamado "loitering", termo em inglês que também pode ser traduzido como "perambulação", que seria um modus operandi utilizados pelo criminoso para estudar o local da ação. Ainda de acordo com a nota, a tecnologia é apenas um "indicativo" que auxilia as forças de segurança e "jamais" funciona como veredito ou substitutivo da atuação das polícias.
Ouça a matéria do repórter Lucas Arruda no 'Play' acima
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