Situação é o retrato de uma era de desinformação e descrédito às vacinas
Foto: Divulgação/MS
Pernambuco não registra casos de poliomielite há 35 anos. No Brasil, a doença infecto-contagiosa aguda causada pelo poliovírus foi considerada erradicada pelo Ministério da Saúde em 1994, ou seja, cinco anos depois que o Recife já havia superado os surtos e epidemias de paralisia infantil.
No entanto, a cidade que um dia foi considerada referência mundial na vacinação de crianças contra a poliomielite, desde 2015 não consegue atingir a meta de imunização: 95% do público alvo, que é o valor tido como mínimo no país. O decréscimo é anual, gradativo e preocupante. Mas acima de tudo, é o retrato de uma era de desinformação e descrédito às vacinas - que salvaram e continuam salvando vidas.
Histórico
A primeira descrição de um surto de poliomielite no Brasil foi registrada em 1911, pelo médico Fernandes Figueira, no Rio de Janeiro. Capital do país à época, o Rio vivia o auge dos desafios sanitários entre as décadas de 1900 e 1920, presenciando eventos históricos como a Revolta da Vacina. Uma urbanização desastrada e a ineficácia da saúde pública, provocaram o espalhamento de doenças decorrentes de vírus e bactérias rapidamente. Com a paralisia infantil não foi diferente.
Segundo o Ministério da Saúde, a poliomielite é fruto do contato direto com fezes ou secreções eliminadas pela boca de pessoas infectadas pelo poliovírus, atingindo os sistemas respiratório, digestivo, e por fim, nervoso central. Entre as principais sequelas está o impedimento da mobilidade dos membros inferiores, com a perda de força pelos músculos, e a insuficiência respiratória.
Isso mostra o quanto as más condições habitacionais e a ausência de saneamento básico de qualidade foram determinantes para disseminação da poliomielite no Brasil - e ainda hoje, em países com baixos índices de IDH, como Paquistão, Afeganistão e Malawi.
Ainda que adultos também sejam atingidos pelo poliovírus, o combate à doença é realizado ainda na infância, dada a capacidade que a poliomielite possui de se manifestar nessa fase da vida. Depois de inúmeros surtos em diversas capitais, duas vacinas foram desenvolvidas contra a paralisia infantil em 1950, uma pelo pesquisador e médico norte-americano Jonas Salk, com o vírus inativado e injetável, e a outra por meio das famosas gotinhas, com o vírus atenuado, desenvolvida pelo pesquisador polonês Albert Sabin.
Jonas Salk e Albert Sabin/Internet
A partir de 1961, o Brasil passou a vacinar em massa, com o auxílio do Instituto Oswaldo Cruz para identificação do poliovírus. Na década de 1980 foi estabelecido o "Dia Nacional de Vacinação", cujo objetivo era imunizar todas as crianças de até cinco anos de idade em um único dia. E a meta era atingida. Com a vacinação, o último dos mais de 26 mil casos de poliomielite no país, entre 1968 e 1989, foi registrado em Souza, na Paraíba, antes da virada para a década de 1990.
A importância de Pernambuco
Em 1979, Pernambuco havia registrado 237 casos de poliomielite. À época, Elizabeth Azoubel era coordenadora do Plano Nacional de Imunização (PNI) no estado. Com orgulho, a pesquisadora carrega as tabelas escritas à mão que mostram o impacto positivo da imunização em crianças menores de cinco anos no combate à paralisia infantil. Já no ano seguinte, em 1980, houve uma redução de 54% no número de registros de poliomielite.
Fonte: Elizabeth Azoubel
Com o avanço das pesquisas, que também mostraram o que poderia ser melhorado nos imunizantes, e a forte adesão da população, a qual participava em peso dos dias voltados à vacinação em massa, em 9 anos, Pernambuco erradicou a circulação da doença. A pesquisadora conta o papel do Recife nessa conquista.
“Por vários anos, enquanto se teve a doença, a campanha de pólio atingia 95%. Eram duas campanhas anualmente. A vacina de pólio é constituída por três vírus, o P1, o P2 e o P3. Aí eles viram que ainda estava tendo casos de poliomielite em crianças vacinadas pelo P3. Começaram a fazer uma pesquisa. O Centro de Atlanta, dos Estados Unidos, veio aqui para Recife. Vieram técnicos de lá e trabalharam com os técnicos do LACEN/PE, e viram que a quantidade do P3 estava insuficiente para proteger as crianças. Eram três mil unidades universais do vírus, e então aumentou para 600 mil. Com isso, não apareceu mais casos de pólio, e a vacina foi modificada no mundo inteiro, mais ou menos em 1987. Eu digo que Recife tem um papel muito importante na erradicação da poliomielite por conta disso”, declarou.
Fonte: Diário de Pernambuco, 16 de novembro de 1989 / Hemeroteca Digital / Biblioteca Nacional
Elizabeth também relata que há uma grande diferença na forma como a sociedade enxergava as campanhas de vacinação.
“A vacinação daquela época era um dia de festa. Todo mundo fazia questão de participar. Todas as repartições públicas deixavam seu carro à disposição da Secretaria de Saúde do Estado, e a gente tinha condições de cobrir todas as áreas, do Recife ao Interior. A gente abria posto em escola, em casa de família, em associações… No lugar que se via condições de higiene, a gente abria”, relembra.
Foto: Frei Caneca FM/PCR
Mudança de cenário
Entretanto, desde 2015, os números apontam para uma cobertura vacinal defasada no estado; especialmente no Recife, preocupando pesquisadores e profissionais da área da saúde. Segundo dados do Sistema de Informação do Programa Nacional de Imunizações (SI-PIN), entre 2018 e 2022, a vacina oral (VOP), gotinha dada a crianças com um ano de idade, não ultrapassou os 66,5% do público alvo, chegando aos 57,24% em 2022.
Foto: Ricardo Botelho/MS
A vacina injetável (VIP), aplicada em menores de um ano de idade, seguiu no mesmo caminho. Caiu de 89,76% em 2018 para 64,19% em 2022: porcentagens muito abaixo do que se espera para a cidade um dia tratada como referência em vacinar.
A pandemia de covid-19, cuja maior incidência foi entre 2020 e 2022, representou um importante passo rumo ao retrocesso no engajamento, e mais, no entendimento da população sobre a importância da imunização de um modo geral. Com a poliomielite não foi diferente.
Até junho de 2024, para um público alvo de 69.080 crianças, Recife não conseguiu vacinar nem um terço. Cerca de 20.414 foram imunizadas, representando aproximadamente 29,55% dessa população. Já o estado de Pernambuco não está muito distante desse cenário. Para um público de 488.221 pessoas, 175.824 foram imunizadas: pouco mais que 36%.
É importante ressaltar que as campanhas têm sido realizadas. Em junho deste ano, todos os municípios pernambucanos promoveram o Dia D contra a pólio. Só no Recife foram 175 pontos de vacinação, e ainda assim, os números seguem abaixo do esperado. Já encerrado o ano de 2023, Pernambuco conseguiu atingir somente 82,68% da cobertura vacinal, de acordo com a Secretaria Estadual de Saúde (SES-PE).
Elizabeth Azoubel, hoje coordenadora do PNI na capital pernambucana, credita a baixa adesão à desinformação em massa. A pesquisadora, que em 1999 ganhou do Ministério da Saúde um certificado pela contribuição em favor da vacinação contra a poliomielite, olha com tristeza para todo esse cenário.
Fonte: Elizabeth Azoubel
“Em 2016, a gente já tinha as coberturas caindo, e foi caindo mais e mais. Dá uma tristeza tão grande quando você vê as coberturas hoje. A gente passou quase dois meses vacinando para atingir 29,55% da cobertura. Para quem viu o que a gente viu, a primeira campanha de pólio, o trabalho todo que para erradicar a doença. Com uma cobertura dessa, a qualquer momento, a doença pode voltar”, alerta.
Um dos principais agentes da desinformação, apontada por Azoubel, é o movimento antivacina. Apesar de não ser recente, com as primeiras manifestações registradas ainda no século XVIII, o movimento antivacina ganhou força durante a pandemia de covid-19, promovendo a disseminação de informações inverídicas sobre possíveis problemas que os imunizantes poderiam causar.
Metas
De acordo com a Fundação Oswaldo Cruz, além de conseguir reverter o cenário de vacinação, o Brasil também precisa criar estratégias de vigilância da poliomielite para contenção de possíveis surtos.
Em 2021, a Fiocruz e a Secretaria de Vigilância e Saúde do Ministério da Saúde firmaram um protocolo de intenções para implementar um programa de Reconquista das Altas Coberturas Vacinais. Para Campanha Nacional de Vacinação contra a Poliomielite lançada pelo MS neste ano, quase R$ 150 milhões foram destinados a fim de que a imunização pudesse ocorrer, por exemplo, em ambientes escolares.
No caso de Pernambuco, a coordenadora estadual do PNI, Magda Costa, detalha como o estado tem olhado para a imunização contra o poliovírus.
“A cobertura vacinal depende da estimativa populacional de cada município para esse público. Ao longo do tempo, o Ministério da Saúde tem atualizado os painéis de cobertura vacinal. Então, mensalmente, esses dados são sujeitos à revisão e atualização. Além disso, cada município vai apresentar a sua estimativa populacional. A cobertura vacinal é um importante indicador para estimar a situação de saúde de cada região”, conta.
Entre campanhas de vacinação com baixa adesão e a perspectiva de um futuro melhor, duas certezas se estabelecem: se doenças uma vez superadas retornarem, a desinformação terá sido uma das grandes responsáveis; e não há outro caminho para barrar a circulação da poliomielite que não seja a imunização. A humanidade já provou isso uma vez.
Com sonorização de Lucas Barbosa e edição final de Daniele Monteiro,
Reportagem - Lucas Arruda
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