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Política

Opinião | A liberdade em quarentena


Por: REDAÇÃO Portal

27/11/2024
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Por, Antonio Lavareda

No Ocidente, que é onde minha vista alcança, a questão da liberdade nesses tempos remete sobretudo ao medo. Como o professor Sul-coreano-alemão, Chul Han, descreve,
“a liberdade não é possível onde reina o medo. Medo e liberdade se excluem mutuamente”. O medo aprisiona a sociedade. Contraposto ao espírito da esperança , sobretudo à esperança ativa, comprometida com movimentos de busca do progresso, ele a deixa em  permanente quarentena (Byung-Chul Han, 2023).

Por certo, isso não significa esquecer o fato de que  há diversos países no hemisfério que enfrentam essa  questão na dimensão mais concreta, dura, primitiva - de histórica privação de liberdades públicas. Países  onde nunca houve instituições propriamente democráticas, a  exemplo entre outros de  Zimbábue, Ruanda, Gabão ou Burundi. Outros há em que  elas existiram mas  foram interrompidas por  revoluções autodenominadas democratizantes, mas  que se corromperam em regimes autoritários como Cuba, Venezuela e Nicarágua.

Em todos esses países, na ausência quase absoluta da liberdade, o medo do sistema, o temor aos tiranos, está incorporado permanentemente ao kit de sobrevivência mental  dos indivíduos na esfera pública.

Mas não  é desse medo que cogito aqui. Tampouco se trata do “medo líquido” de que fala   Bauman, cujas raizes são as incertezas  relacionadas aos múltiplos riscos da “globalização negativa”.  Sejam os desastres climáticos e ambientais, as crises econômicas, as pandemias, ou o terror ( Bauman, 2008).

Dirijo a lente para o sentimento  que tem prosperado nesse primeiro quartil do  século XXI, difundido regular e sistematicamente - com organização, disciplina e método- , pela extrema direita, em suas diferentes versões nacionais. Um  medo “arquitetado”.

Assim, às velhas formas de supressão das liberdades vem se somar agora a estratégia do iliberalismo, promovida pela ultra direita internacional. Nela, a democracia é corroída por dentro, conforme o modelo  exitoso da  Hungria, de Viktor Orbán (Cas Mudde, 2023). O sucesso dessa estratégia se baseia na promoção desenfreada do medo.

O medo que assume caráter coletivo é polarizador. Magnifica as divisões dentro da sociedade. Politiza  e aprofunda diferenças que antes se viam pouco valorizadas, eram toleráveis e conciliáveis. Ele produz e dissemina uma sensação de instabilidade que termina por se materializar efetivamente, estimulando descontentamento e protestos, conflitos e até derrubadas de governos. Esse medo redesenha o debate público, e leva os eleitores a abandonarem seus partidos e lideranças tradicionais, galvanizando o apoio a outsiders, em geral  líderes autoritários que lhes acenam com segurança e proteção. O medo justifica, por fim, as políticas repressivas, desde a aceitação da restrição de direitos até mesmo o aplauso à hipótese de governos totalitários, como resposta ao que Hanna Arendt já conceituara como  “inimigos objetivos”, geradores de suspeita generalizada e indiscriminada, sobre os quais se determinava  o “uso da mentira”, administrado primeiro pelo partido e depois pela máquina do Estado (Arendt, 1951).

Nos tempos atuais, para  promovê-lo  e fazer adoecer a democracia representativa os venenos são atualizados, bem como a posologia adotada. Envolve doses elevadas de desinformação deliberada e disseminação maciça de fake news na internet.

O pior é que não há antídotos cem porcento  eficientes. Não há como evitá-los de todo.
A emergência das redes sociais tornou  isso impossível. Mas é necessário coibí-los.
Limitá-los  em alguma medida. Sobretudo pela regulação das plataformas, como fez a União Europeia.  As deepfakes criadas por inteligência artificial e  os  milhões de usuários e bots, que distribuem informação apócrifa em redes criptografadas de ponta a ponta, agravaram o problema. Elevando  o desafio  a um patamar bem  superior ao que foi no passado o de  controlar a propaganda política em jornais, rádios e TVs (Lavareda, 2024).

Ocorre que, em países como Brasil e Estados Unidos,  há uma enorme resistência à regulação de plataformas e redes. A extrema direita  paralisa essa agenda nos respectivos congressos. Afinal, é  difundindo o medo, e a partir dele agredindo ora as minorias, ora o establishment, mesmo quando estão claramente associados aos interesses das elites econômicas, é com essa fórmula que os novos populistas  se valem dos algoritmos das redes  para conquistar apoio eleitoral. A combinação dos interesses econômicos das plataformas e da força da ultra direita nesses países  torna muito difícil caminhar nessa direção.

A expectativa do mundo se volta   nesses dias para  tentar prever  o que  acontecerá  na principal potência, os Estados Unidos da América, a partir de 20 de janeiro do ano próximo. Mas a rigor  não é necessário qualquer exercício adivinhatório. Basta  reler os discursos e rever a propaganda da campanha. Até  o momento, temos um show de coerência. Os nomes anunciados para  o novo gabinete, por mais bizarros que pareçam a muitos, são perfis  totalmente congruentes com a retórica do então candidato.

Portanto, é mais que justificado o temor de um retrocesso significativo na agenda de combate ao aquecimento global, numa quadra em que se multiplicam os desastres climáticos; do  anunciado distanciamento dos líderes europeus, agravado pelo  maior alinhamento com a Rússia;  e o temor de uma  redução substancial do apoio à OTAN, e especialmente  à Ucrânia, que será levada à  paz de joelhos. Na agenda interna,  haverá  deportações em massa de indocumentados; perseguição a funcionários  que  no passado não foram complacentes com iniciativas ilegais; demissões em massa de servidores públicos, a pretexto de reduzir a burocracia; posturas negacionistas na condução da saúde pública; e até mesmo a extinção do Departamento Federal  de Educação.  Tudo isso sob a direção e batuta  ideológica  da Direita-Tech  representada por Elon Musk e J.D. Vance.

Por que Trump volta à Casa Branca? Porque que o medo já estava suficientemente instalado na alma dos americanos ao tempo da votação.

A poucos dias da eleição, uma pesquisa do jornal New York Times, em conjunto com o
Siena College, mostrava a vitória de Trump no voto nacional por um ponto percentual (Trump, 47%, Harris, 46%) .  Como sabemos, o resultado não foi muito diferente: Trump teve no voto total 50%, e Harris 48.4%.Uma diferença de + 1.6.

Aquela  pesquisa mostrou que  76% dos americanos acreditavam que a democracia no país  estava sob ameaça. Uma opinião disseminada em todos os níveis de renda e escolaridade. Com presença simétrica  nos dois contingentes eleitorais (com 77% entre os eleitores de Harris, e 76% entre os de Trump). Por seu lado, em outro levantamento, o Instituto Gallup revelou  que o medo dos imigrantes havia assumido grandes proporções . Para um inédito percentual de 82% dos eleitores  republicanos,  a imigração aparecia como questão super importante para ser levada em conta na eleição.

Os norte americanos foram às urnas sob dois signos combinados: o do medo generalizado de que sua democracia estivesse  em perigo; e um segundo, potencializado pelo primeiro, o da ansiedade específica movida sobretudo pelo descontentamento com o governo do dia, com 62% acreditando equivocadamente que a economia estava piorando e 46% insatisfeitos com sua situação econômica contra apenas 25% de satisfeitos.

Perdeu o partido no poder. O  que tem ocorrido com frequência no pós pandemia em diversos outros países que enfrentaram dificuldades,  especialmente no capítulo de inflação e juros elevados. Como prescreve a “teoria da inteligência afetiva”, a ansiedade gerada na base eleitoral dos partidos incumbentes cria uma abertura que é usada para encorajar a defecção de eleitores na quantidade suficiente para  mudar a correlação de forças em favor dos desafiantes. ( Mackuen, Marcus, Neuman, and Keele, 2007)

Porém, cabe enfatizar  que, se a economia jogou mais uma vez um papel central no  voto, o  descontentamento com ela ocorreu dessa vez agravado por um clima de medo, propelido por fake news poderosas, pervasivas, mesmo  quando desmentidas de forma contundente pelos fatos.

“Haitianos comendo  gatos” e  “votando em massa”; vídeos produzidos na Rússia denunciando “operações irregulares do FBI”; “democratas apoiando o aborto até depois do nascimento”; Estados Unidos  ocupado por “hordas de estrangeiros  criminosos importados pelo governo das masmorras do terceiro mundo”. Todas, notícias falsas. Somente as postagens  de Elon Musk com alegações  falsas e vídeos adulterados  acumularam  bilhões de visualizações segundo o Grok, concorrente do ChatGPT.  Grok que é do mesmo Elon Musk, que doou 200 milhões de dólares e fará parte do governo  Trump.

Concluindo, o  certo é que a inflação aliou-se  ao medo, e os americanos deram lugar -   com o novo governo Trump majoritário  na Câmara e no Senado, e respaldado pela maioria conservadora nos Suprema Corte - a uma  era de incerteza  como poucas vimos antes. Nesse momento, não é exagero afirmar, voltando à metáfora de Chul Han, que a  liberdade do mundo entrou em quarentena.

* Cientista político e sociólogo, IPESPE/ UFPE. Presidente de Honra da ABRAPEL - Associação Brasileira de Pesquisadores Eleitorais. Palestra proferida na Conferência
Internacional “O Porto da Liberdade”. Promovida pelo Instituto Português de História e Cultura Local. Porto. Portugal. 26/11/2024 .

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