Desempregada, Carmem Virginia, mulher negra pernambucana, viu no dom de cozinhar uma saída para conseguir sobreviver e dar condições dignas de vida aos seus filhos.
Foto: Arquivo Pessoal
Iniciar um negócio do zero e obter sucesso é o sonho de milhares de pessoas. No Brasil, muitas vezes, a figura de um empreendedor surge mais da necessidade do que do planejamento. E com a personagem que encerra a série de reportagens “Vozes de Poder”, não foi diferente. Desempregada, Carmem Virginia, mulher negra pernambucana, viu no dom de cozinhar uma saída para conseguir sobreviver e dar condições dignas de vida aos seus filhos.
Quem pensa que a trajetória da “Dona Carmem” - hoje empresária de sucesso, apresentadora do programa “Uma Senhora Panela”, no canal GNT, e aclamada chef do Altar Cozinha Ancestral, com unidades de alta gastronomia no Recife e em São Paulo – foi simples, não imagina os desafios que ela enfrentou. Principalmente por ser uma mulher negra tentando se firmar em um mundo de negócios majoritariamente branco.
Carmem Virginia
“As coisas foram acontecendo à medida que eu ia mostrando a minha força no sentido de empreender mesmo, no sentido de tocar a minha vida, tomar à frente dela e entender que era eu por eu, não era essa história de nós por nós”, afirma.
O desafio de empreender
Segundo um estudo feito pelo Sebrae, baseado na Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) do terceiro trimestre de 2023, 52% dos donos de pequenos negócios no país se autodeclaram negros, ou seja, 15,2 milhões de pessoas. No entanto, devido às condições estruturais de desigualdade, como acesso mais restrito à educação, os negros acabam ganhando, em média, 32% menos do que os brancos.
Carmem, empreendedora negra, aponta, entre tantas barreiras, qual costuma ser a principal.
“Eu acho que o principal desafio da gente é ter o dinheiro para começar. É o que falta para grande maioria das mulheres negras que querem dar um start na sua vida, que querem se livrar de relações abusivas, que estão sem emprego como eu, que estava sem emprego. Porque eu sempre me sustentei, sempre sustentei os meus filhos. Então eu acho que o dinheiro para começar é muito complicado. A gente não tem linha de crédito”, reflete.
O jeito negro de tratar o alimento
A alimentação está para além de uma necessidade biológica. No caso do ser humano, ela é parte fundamental da cultura de um povo. E quando falamos do povo negro no Brasil, são vários os saberes e fazeres culinários deixados como herança. A ancestralidade está presente desde o acarajé da Bahia até a feijoada carioca.
Ainda assim, as centenárias condições de exploração também fizeram com que o povo negro precisasse aprender a lidar com a escassez. Dona Carmem iniciou sua jornada enquanto empreendedora vendendo caranguejos e guaiamuns, alimentados por ela mesma com insumos da melhor qualidade.
Ao acreditar que somos o que comemos, e por isso, merecemos o melhor, a chef não desperdiça nenhum alimento. Pelo contrário, tudo pode ser aproveitado.
“O jeito negro de tratar o alimento me ajudou, foi meu aliado, mas outras pessoas não vão pensar nisso, né? Com a casca de fruta banana eu crio um prato para vegano. A banana, eu uso para um ceviche, eu uso para a cartola. Mas a casca, eu limpo, fatio, pico e tempero ela para que vire uma espécie de carne, que vai compor um arroz vegano. Então, a gente usa dessa tecnologia de faltar as coisas, da fome, do medo da fome, que é negra”, detalha.
Preparar caminhos
Em cada lugar de poder alcançado, a chef Carmem Virginia derruba preconceitos e combate o racismo, que para ela, é uma das principais engrenagens responsáveis pela interrupção de trajetórias negras bem-sucedidas. No intuito de que outros, mulheres e homens negros, também consigam trilhar esse caminho, Dona Carmem não se permite errar.
“Se a gente errar, o que vai acontecer? A gente vai fechar os caminhos do próximo, porque vai dar aquele gostinho pro inimigo que só tá esperando a gente errar e dizer assim: ‘tá vendo? Vai confiar nesse povo’. Eles ainda precisam aprender muito. Então, eu tenho muito medo de errar. Isso é quase um assombro, de que eu tenho que fazer tudo certo, mostrar que tá sempre tudo certo, ser a pessoa mais clara, mais transparente possível, para que além de assegurar o meu lugar, trazer mais (pessoas)”, acredita.
Sonhar um futuro melhor
Com dois restaurantes de sucesso e uma carreira consolidada na gastronomia, Carmem Virginia confessa realizar o que sua mãe, por exemplo, não podia: ter o direito de sonhar. E enquanto mulher negra, sonhar é um ato de resistência.
“Eu tô sonhando já pra minha neta, que tem três anos. E isso tudo é muito importante, porque me mostra que minha filha tá pegando uma história muito melhor, porque minha filha não é pressionada, com 24 anos, para arrumar um emprego pra se manter. Ela tem uma mãe que tá conseguindo pagar todas as contas e dizer assim: ‘filha, aquieta um pouco. Só estuda, foca no estudo, não vai fazer duas, três coisas ao mesmo tempo pra que isso não te canse’, pra que isso não te tire o foco da faculdade dela. Tem noção do que é uma mãe preta dizer isso para uma filha?”, conclui.
Esta série de reportagens contou com a sonorização de Lucas Barbosa e edição final de Daniele Monteiro.
Ouça a matéria especial do repórter Lucas Arruda no 'Play' acima.
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