A 'brincadeira' que derruba e as consequências que ela causa
Por Catarina Gonçalves
Ontem, durante todo dia, recebi em dezenas de grupos de WhatsApp vídeos mostrando uma nova moda que tem ocorrido nas escolas brasileiras: uma brincadeira na qual três crianças e/ou adolescentes ficam enfileirados paralelamente e duas delas derrubam o colega que está no meio do trio enquanto ele pula. Visualmente a cena já assusta, pois é notório para qualquer pessoa que tenha noção de causa-consequência o quão perigosa é a brincadeira. O pavor se torna ainda maior quando acompanhado aos vídeos começam a chegar matérias de jornais relatando que uma adolescente de 16 anos faleceu no Rio Grande do Norte vitimada por esta “brincadeira”.
Diante do medo sentido por todo pai e mãe ao ver seu filho diante de mais um potencial perigo, muitas pessoas me perguntaram: o que leva estes meninos e meninas a fazerem isso? A partir desta questão iniciei uma reflexão, à luz do desenvolvimento moral, buscando encontrar respostas que nos ajudem a compreender o que leva crianças e adolescentes a agirem assim e qual a melhor forma de nós, adultos da relação, lidarmos com estes desafios.
Em primeiro lugar, precisamos discutir que estes que se envolvem numa situação assim, certamente, possuem dificuldades com os limites que necessariamente precisam ser estabelecidos nas relações consigo e com as outras pessoas. Compreendendo que lhes faltam limites, precisamos compreender o que significa esta palavra. Yves de La Taille, um dos maiores pesquisadores da moralidade em nosso país, nos chama atenção para o fato de que a palavra limite possui três dimensões, das quais duas nos interessam sobremaneira nesta discussão. A primeira delas tem um sentido moral, significando uma fronteira a não ser superada. A segunda, contrariamente, trata, justamente de uma barreira a ser transposta e, por isso, tem uma perspectiva de superação, ou seja, há limites que precisam ser rompidos (vencer formas anteriores de ser).
Estas duas formas de limites caminham, para este pesquisador, lado a lado. Isso porque, apenas vai respeitar o limite de não ferir o outro (em seu sentido moral) alguém que superou o limite de não se focar em seu próprio bem estar pessoal (ou seja, alguém que superou o seu próprio limite de focar-se em si exclusivamente). Isso porque, uma pessoa que respeita limites precisa se sentir forte e bem ao respeitar o limite do outro e não um fraco. Assim, ao respeitar o outro respeitamos, também, a nós mesmos.
Para respeitar limites, meninos e meninas (adultos também) precisam conhecer as consequências dos próprios atos, e isso não se constrói através de punições, mas, sim de reflexões, diálogos, coordenações de pontos de vista e, quando necessário, sanções por reciprocidade.
Para ajudar nossos filhos e filhas a respeitarem os limites relacionais e superarem seus próprios limites na descentração de si para enxergar o outro como alguém de valor, precisamos, antes de mais nada, ajudá-los a explorar situações de causa e consequência.
Desse modo, quando ele mente, não deve receber a sanção de ficar sem celular por 30 dias (o que o celular tem a ver com a mentira?), mas, sim, deve perceber que fragilizou a relação de confiança com a outra pessoa com que se relaciona.
Quando ele assume o compromisso de chegar em determinada hora de uma festa e não cumpre, não devemos deixá-lo uma semana sem Netflix (o que a Netflix tem a ver com isso?), mas, sim, garantir que na próxima festa ele não poderá ir porque não se responsabilizou com o que deveria quando teve o privilégio anterior.
Não ensinamos limites batendo nem adotando castigos coercitivos. Quando batemos ou castigamos não ensinamos nada sobre limites, mas apenas que o comportamento deve parar de toda forma, sem que seja fornecido indícios sobre quando nem por quê. Sem que sejam fornecidos indícios que levem nossos filhos e filhas a se responsabilizarem pelas consequências de seus atos.
Desse modo, esta reflexão sobre limites nos ajuda a entender, em parte, as razões que levam crianças, jovens e adolescentes a se envolverem em ações desta natureza: eles nem respeitam os limites que não podem ser transpostos na relação com o outro; tampouco superam seus próprios limites de serem melhor para si mesmos (só conseguimos ser melhor para os outros quando somos primeiramente para nós).
Portanto, se queremos favorecer condições para que nossos meninos e meninas estejam mais protegidos destes perigos tão comuns em tempos atuais precisamos, primeiramente, ajudá-los, ao longo da vida, a desenvolverem criticamente suas relações de causas e consequências. São elas, sem dúvidas, que nos ajudam a construir os limites quando eles são necessários e a transpôlos quando precisarmos. Como nos disse La Taille, precisamos educar as nossas crianças e adolescente para que consigam identificar quando o limite é um convite a passar para o outro lado, ou, pelo contrário, uma ordem para permanecer de um lado só.
Profª Drª Catarina Gonçalves Professora Adjunta da Universidade Federal de Pernambuco - UFPE. Pesquisadora do GEPIFHRI – Grupo de Estudos e Pesquisas Interdisciplinares em Formação Humana, Representações e Identidades.
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